por Fátima Alves
A saúde constitui, em contexto de crise económica, uma das áreas mais sensíveis e a que se deve dar especial atenção, dado que está em causa um dos eixos estruturantes da vida dos/as portugueses/as: o bem-estar bio-psico-social, cultural e espiritual, a assistência e acesso aos direitos e serviços em situação de doença. A racionalização introduzida como resultado da intervenção da troika altera os objetivos que guiaram a construção do sistema de saúde português desde o 25 de Abril, que se pretendia gratuito, universal e acessível. Não só nunca tivemos um sistema com os contornos dos oferecidos nos países que construíram um Estado de bem-estar, como também agora comprometemos o que temos pela falência do projeto político e económico.
É um fato que a universalidade dos direitos é posta em causa com o argumento de proteção aos mais pobres. A sua perda representa uma regressão civilizacional. É preciso perceber qual o seu impacto no aumento das desigualdades tendo ainda em conta que estas se relacionam intimamente com as condições sociais, económicas e culturais em que as pessoas nascem, vivem, envelhecem e morrem. As populações desfavorecidas e economicamente mais vulneráveis vivem em piores condições ambientais, quer ao nível da habitação, necessidades básicas, trabalho, acesso à educação etc., estando deste modo mais expostas a vários tipos de doenças físicas e mentais (que têm vindo a aumentar). As populações atingidas por taxas mais elevadas de doença apresentam maior dificuldade em saírem da situação de exclusão que vivem e aprofundam-na duplamente: por serem pobres são doentes e por serem doentes tem mais dificuldade em sair da pobreza.
Segundo estudos recentes do Eurostat e do PNUD, Portugal é dos países europeus onde a desigualdade social é maior. As diferenças entre os mais ricos e os mais pobres tem vindo a aumentar sendo que parte significativa da população portuguesa vive no limiar da pobreza, tendência que se tem vindo a agravar neste contexto de crise.
Urge promover o debate e equacionar alternativas com a participação não apenas da academia e dos técnicos ou dos políticos, mas com as próprias populações. Que outras soluções poderão ser equacionadas para além da privatização e do desmantelamento do Estado e dos direitos sociais? Importa que as ciências sociais não percam de vista estas indagações perante o paradoxo de vivermos um tempo em que coexistem lado a lado níveis de riqueza sem precedentes e níveis de pobreza extrema.
Neste contexto justifica-se desde logo repensar a participação das populações no sistema de saúde, não apenas como adesão dos indivíduos às agendas da saúde, numa extensão da medicina na ação colonizadora da vida pela racionalidade científica, mas num reconhecimento das racionalidades leigas e dos conhecimentos plurais que povoam a nossa sociedade neste campo. O que coloca desde logo dois grandes desafios: por um lado a imperatividade do reconhecimento destes saberes que orientam a vida prática, as racionalidades leigas; e por outro lado, a promoção e o exercício efetivo (e não meramente no papel) da cidadania ativa dos cidadãos na saúde (na definição das prioridades politicas da saúde e da sua gestão e avaliação) como principio basilar de qualquer democracia.