O painel intitulado “Democracia, trabalho e direitos sociais” convoca uma abordagem da vida em sociedade que rompe com o silêncio e esquecimento introduzidos em torno desta problemática. Silêncio em torno da identidade político-jurídica do trabalho e dos seus direitos assente numa particular combinação entre liberdade, igualdade e justiça social, e nas restrições quanto ao exercício do poder desigualmente distribuído entre trabalhadores e empregadores. Esquecimento de que a esfera laboral e os direitos que se lhe encontram associados são indivisíveis de um projecto democrático de sociedade, onde os valores políticos e sociais da participação, do respeito, do reconhecimento e da dignidade das pessoas devem constituir o cimento normativo da vida em sociedade.
Esta tendência que se radicalizou sob o cânone da austeridade tem vindo a ser implementada à medida que se desinstitucionalizam pilares básicos dos processos de redistribuição social, como é o caso dos impostos progressivos, dos mecanismos de protecção social e de assistência aos riscos de existência, bem como o próprio direito do trabalho. Em seu lugar, surgem novas institucionalidades marcadas pelas supostas combinações virtuosas entre risco e segurança ou flexibilidade e segurança, das quais resultarão o equilíbrio entre a coesão social necessária à viabilidade da sociedade e, as manifestações de competitividade requeridas para o bom funcionamento dos mercados. Desde os anos 1980 que há toda uma constelação de conceitos como os de modernizar a organização do trabalho, boas práticas, responsabilidade social, good governance, benchmarking, shareholders, stakeholders, empreendedorismo, os quais encontraram no modelo da flexigurança e nas teorias políticas das terceiras vias quadros de referência legitimadores. Contudo, sem se recusarem as discussões e debates a ter em torno de projectos de transformação da esfera sociolaboral importa ser-se muito claro acerca dos pressupostos que se assumem como requisitos para o debate. Em meu entender eles são dois.
O primeiro, o de que a reflexão em torno do trabalho e do emprego não pode ser feita tendo por orientação estratégica a desestruturação dos direitos que se lhe encontram associados. O trabalho e os seus direitos não devem ser postos um contra o outro. Não vale, por isso, deixar entrar as supostas correlações estatísticas entre flexibilidade do direito do trabalho e redução do desemprego, entre redução da rigidez da legislação laboral e crescimento económico, etc., tão ao gosto dos que fazem uma leitura precaucionária da esfera laboral com objectivos neoliberais. Proponho, deste modo, a defesa de uma moratória em torno das reformas laborais da qual não constem possibilidades de “supostas combinações virtuosas” entre mais flexibilização dos direitos laborais e dinâmicas económico-financeiras, dela constando apenas a ideia de que deixem os direitos laborais em paz. A ideia não é nova e está subjacente às posições assumidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos termos das quais os direitos laborais não devem ser ameaçados com a crise. A crise deve ser encarada como uma oportunidade para reforçar a importância de proteger e respeitar os direitos dos trabalhadores.
O segundo é o de que se deve assumir que as relações laborais e os seus direitos, a par de outras, atendendo às suas especificidades, devem reflectir com clareza os elementos democráticos, de justiça social e de direitos fundamentais enquanto expressões do entendimento humanista centrado na dignidade humana. Neste sentido, o papel do Estado e a regulação dos mercados de trabalho devem ser perspectivados como elementos constitutivos de um processo sociopolítico onde as leis do mercado não possam aprofundar a vulnerabilidade dos mais frágeis, nem a lógica contratual se possa afirmar como expressão de um individualismo que coloque em causa a dimensão colectiva do direito do trabalho. Proponho, deste modo, uma séria e clara afirmação da negociação colectiva enquanto dimensão fundamental da busca pela justiça social e do aprofundamento democrático das sociedades contemporâneas.
António Casimiro Ferreira
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1 comentário:
Por José Soeiro
O texto de António Casimiro Ferreira é profundo nos pressupostos – não há democracia política sem democracia laboral – e no diagnóstico – a austeridade tem sido a radicalização a favor do mercado do paradigma dominante que procura uma suposta combinação virtuosa entre proteção e competitividade. Esse paradigma começou em Portugal logo na década de 1980, teve o seu último grande momento pré-troika em 2008 (com a aprovação do Código de Trabalho Vieira da Silva, cujo processo de preparação motivou aliás a demissão de Ferreira da Comissão do Livro Branco, em protesto contra a flexigurança) e agora radicalizou-se com a austeridade. É ele que precisa de ser derrotado por uma governação de Esquerda. É a essa luz que leio as duas propostas do autor.
As sugestões que avança parecem-me certeiras – e também, creio, lucidamente pessimistas. Quando se toma como reivindicação o mote “deixem os direitos laborais em paz”, é porque se pressupõe que as alternativas políticas disponíveis só podem fazer transformações regressivas – a mudar, será para pior. Claro que esta raciocínio tem pelo menos três bases sólidas: em Portugal, a esquerda anti-austeridade não é maioritária; o último governo do PS, quando mudou as leis laborais, foi no sentido da “flexibilização”; o próximo governo, se não se desvincular do Tratado Orçamental, só poderá fazer pior – e os dirigentes do PS têm garantido que não pretendem desvincular-se. “Deixem os direitos laborais em paz” é por isso, ao mesmo tempo, um justo grito de resistência e um indício pungente de como falta a Portugal uma maioria comprometida com uma agenda de democracia laboral.
A segunda proposta – retomar a negociação coletiva como base da justiça social –é hoje tão importante quanto hercúlea. Em 2008, quando rebentou a crise, havia no nosso país 1 894 788 trabalhadores abrangidos pelas convenções coletivas. Em 2013 esse número era de 242 239. A contratação coletiva, um dos principais elementos da democracia laboral, foi reduzida, em meio decénio, a uma expressão absolutamente residual. Recuperá-la tem de estar no centro de uma agenda de esquerda – e é um processo que exigirá muita força organizada.
O único elemento de que sinto falta no texto de Casimiro Ferreira é uma referência a quem pode protagonizar estas transformações. Ou seja, à agência coletiva dos trabalhadores. Na regulação laboral como noutros domínios, o que fazem os Governos depende da relação de forças que encontram na sociedade. Isto é, do que nós, cidadãos organizados, permitimos que eles façam. Por isso, acrescentaria um ponto para reflexão e uma nota de esperança.
O ponto: na agenda da esquerda deve estar a reinvenção de um sindicalismo de combate, aberto aos movimentos sociais e aos desemprecários. A nota: a única transformação em contracorrente que aconteceu na legislação laboral nos últimos anos deveu-se justamente a uma mobilização cidadã, a Lei contra a Precariedade, proposta por mais de 35 mil pessoas num processo dinamizado pelas organizações de precários. Foi esse processo que inscreveu no quadro legal novos mecanismos de combate aos falsos recibos verdes.
Quando penso no que precisamos de fazer para governar à Esquerda penso nisto. Sem outra relação de forças, sem a reapropriação da política pela maioria, sem um lento e difícil trabalho de mobilização, a esquerda no governo estará sempre condenada a uma desistente gestão do que existe. É contra essa desistência que pode fazer-se um governo de esquerda.
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