A dívida, a União Europeia e a Soberania

Portugal numa Europa fragmentada


Para a maioria dos europeus da parte ocidental da Europa devastada por duas guerras, a integração económica e a união política traziam consigo uma promessa de paz, democracia, segurança e prosperidade. Durante décadas o processo de construção europeia não desmentiu essas promessas. Por isso mesmo, depois da revolução de Abril, os portugueses quiseram ser parte da Comunidade Europeia, pondo fim à marginalização que o fascismo lhes impusera.

Hoje a União Europeia é cada vez mais vivida pelos cidadãos dos seus países membros, incluindo os portugueses, como um problema, um constrangimento, quando não mesmo uma ameaça.

A União Europeia é desde o início um produto de compromissos entre interesses e visões aparentemente antagónicas da integração económica e política. O processo envolveu, em conflito e compromisso, tanto os que tinham em vista a integração enquanto criação de um espaço irrestrito de circulação, de mercadorias e de valorização de capitais e a submissão da política às necessidades de expansão dos mercados, como os que desejavam um reforço da democracia social através da integração de políticas, de forma a restringir e controlar as dinâmicas mercantis.

A partir de meados da década de 1980 as dinâmicas mercantis começaram a impor-se aos objetivos de política social como imperativo sem alternativa. Essa viragem foi consolidada com a criação do euro e a integração financeira por ela exigida e propiciada.
Sob o regime da moeda única o espaço da política democrática comprimiu-se e a União Europeia fragmentou-se entre membros e não membros da eurozona, entre excedentários e deficitários, entre devedores e credores, no seio da eurozona.

Quando a crise financeira eclodiu, Portugal encontrava-se no lado mais vulnerável da fratura – o dos deficitários e devedores. O que a União Europeia teve para lhe oferecer foi um programa punitivo de empobrecimento que agravou o endividamento e a dependência.
Independentemente do reconhecimento cada vez mais alargado do fracasso da via punitiva para a superação da crise, a possibilidade de uma verdadeira reorientação das políticas e das instituições europeias surge, face à gravidade da situação social, económica e política de Portugal, como uma possibilidade demasiado remota.

Governar à esquerda, sejam quais forem as diferenças no interior da esquerda, não pode deixar de significar a afirmação da democracia em todas as suas dimensões, políticas, económicas e sociais. Como essa afirmação se confronta, em Portugal e nos outros países da União Europeia, com políticas e instituições europeias que servem a supremacia das liberdades dos capitais sobre todas as outras liberdades e direitos, governar à esquerda implica em qualquer caso ter de enfrentar um quadro europeu adverso.


Enfrentar um quadro europeu adverso


A dívida e o Tratado Orçamental
Embora o endividamento público seja apenas uma parte de uma problema mais grave – o do endividamento externo –, foi na dívida pública que a União Europeia quis focar as atenções. Na narrativa da crise do euro construída pela União Europeia, os problemas tinham origem em défices públicos excessivos e a sua resolução na compressão acelerada desses défices.

Foi assim, com as atenções focadas nos défices e nas dívidas públicas, que a União Europeia chegou a um Tratado Orçamental, que foi votado favoravelmente na Assembleia da Republica Portuguesa, sem debate público nem consideração cuidada das suas consequências. Esse tratado vincula Portugal a metas e ritmos de redução do défice e da dívida irrealizáveis, cuja tentativa de realização implicaria a redução a escombros dos sistemas atualmente existentes de provisão de saúde, educação, rendimento na reforma e proteção no desemprego.

O serviço da dívida nos termos impostos pelo Tratado Orçamental implica o sacrifício do cumprimento de todas as obrigações do Estado, constitucionalmente consagradas, a favor do imperativo de salvaguarda dos credores.

É a salvaguarda do Estado Social e de Direito Democrático, o que determina que uma governação à esquerda tenha de enfrentar a questão da dívida negociando a sua reestruturação.
O quadro desejável para uma negociação da dívida pública seria o quadro multilateral da União Europeia. Diferentes propostas foram apresentadas nesse sentido. Nenhuma delas até agora foi devidamente considerada. Na ausência de progressos num quadro multilateral, um governo de esquerda terá de estar pronto e preparado para desencadear o processo negocial por sua iniciativa.

Para Portugal, como de resto para a maioria dos países da zona euro, o Tratado Orçamental constitui-se como um obstáculo à recuperação. Para Portugal e para outros países da União Europeia, sem reestruturação da dívida, ou possivelmente mesmo com ela, as condições do Tratado, não podem, nem devem, ser cumpridas.

O euro 
A questão do euro e da necessidade de enfrentar um cenário de fratura ou de saída de Portugal, constituiu-se e continuará a constituir-se, como um foco de controvérsia à esquerda.


As divergências não se situam no diagnóstico dos defeitos do euro e das suas instituições. Não se situam também na avaliação da decisão passada de entrada na zona euro. Sabendo o que hoje sabemos, poucos de nós teriam consentido que Portugal entrasse na zona euro, pelo menos na zona euro tal como foi desenhada.

Onde se situam as diferenças é no modo de enfrentar os constrangimentos que decorrem da decisão impensada do passado. O leque de posições diversas cobre matizes que se situam entre a aposta numa reconfiguração do euro e dos tratados que salvaguardasse a coesão da da zona monetária e modalidades de saída diversas.

Num contexto em que se procura suprimir o debate, relegando os argumentos a favor da saída do euro para o gueto das ideias impensáveis, o consenso possível das diversas posições à esquerda reside possivelmente na necessidade desse debate. Na urgência de precaver técnica e politicamente todas as contingências.


Construir um mandato para a governação à esquerda


Para governar à esquerda não é apenas preciso conseguir uma maioria de esquerda. Um governo de esquerda precisa de um mandato. Precisa de conhecer a dimensão dos desafios que o esperam. Precisa de estar preparado para os enfrentar e precisa de ter consigo apoio popular suficiente no momento das escolhas difíceis.

Para que esse apoio não falhe é preciso construir esse mandato. Confrontar o país com a tensão entre a salvaguarda da democracia política, económica e social e os ditames da dívida e do euro. Depois disso, levar o povo a escolher e ser fiel a essa escolha soberana.

José Maria Castro Caldas

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4 comentários:

Anónimo disse...

Esta iniciativa e os presentes textos já se inscrevem na construção do mandato de um futuro governo de esquerda.
Noto aqui, no entanto, falta da perspectiva internacional extra-europeia, que me parece importante em várias dimensões, desde logo a económica - vidé TIPP... - mas sobretudo a da própria soberania política e o posicionamento relativo a "negócios estrangeiros" no governo à esquerda.
Saudações.
António Vitorino

Congresso Democrático das Alternativas disse...

Dez teses para um debate imprescindível
João Rodrigues

O contributo de José Castro Caldas enquadra bem o debate entre as esquerdas, suscitando breves apontamentos sob a forma de dez teses:

1. A história da integração europeia é sobretudo a história da transferência de poderes democráticos dos Estados para instituições supranacionais esvaziadas de democracia, ou seja, a história da integração europeia é parte da história da inscrição institucional do neoliberalismo no continente.
2. A escala europeia é a escala política ideal para muitas operações do capital dominante e as suas instituições estão calibradas para consolidar o poder disciplinar dos mercados sobre as classes populares, promovendo a consolidação de regras que transferem recursos de baixo para cima – dos mais pobres para os mais ricos – e de dentro para fora – dos países devedores mais frágeis para os países credores mais fortes.
3. As conquistas socioeconómicas dos de baixo dependeram da intensificação da democracia, associada à construção de Estados capazes e de comunidades políticas com vínculos densos, com possibilidade de institucionalizar a primeira pessoa do plural, mas estes processos estão vedados à escala europeia pela dependência em relação ao caminho percorrido, pela natureza dos arranjos institucionais europeus, pelas fracturas políticas criadas, pela inexistência de um sujeito político progressista real a operar nessa escala e pelo viés neoliberal dos processos políticos supranacionais.
4. Sem instrumentos de política económica – orçamental, monetária cambial, de controlo dos fluxos financeiros ou industrial – a soberania democrática inscrita na Constituição não tem base material sobre a qual assentar, sendo o país na prática governado a partir de fora, com a cumplicidade de elites políticas que agem como se não fossem de cá.
5. A violência socioeconómica deste arranjo é espacialmente desigual, atingindo sobretudo os países periféricos, precisamente os que mais necessitam de mobilizar instrumentos de política económica de desenvolvimento, sendo este último uma miragem no quadro de uma moeda estruturalmente forte e de arranjos feitos para consolidar a distância e a dependência em relação ao centro.
6. Uma dívida externa recorde, uma taxa de desemprego que é o dobro do máximo histórico antes do euro e uma economia cada vez mais atrofiada são outras tantas expressões de uma estrutura que não serve os interesses da maioria dos que aqui vivem.
7. Não é por acaso que um fundado eurocepticismo tem crescido muito nas áreas periféricas e, dentro destas, sobretudo entre as classes populares, estando esta tendência para ficar e para beneficiar quem lhe queira dar tradução política.
8. Se a esquerda quiser reconquistar a hegemonia terá de compreender que a questão nacional, a da reconquista de poder para a escala onde ainda está a democracia, e a questão social, a das possibilidades da maioria, estão hoje imbricadas; se a esquerda não o quiser, essa imbricação ficará entregue às manipulações de certas direitas, como tem acontecido em muitos países onde a esquerda continua enredada em fantasias federalistas sem sujeito social e sem alavancas políticas.
9. O momento da construção de uma vontade nacional e popular pela esquerda não remete para a autarcia, mas para uma renegociação da integração e para uma diminuição do seu alcance, permitindo heresias razoáveis como a política cambial que promova exportações e substitua importações, a socialização do sistema financeiro ou uma política económica de pleno emprego.
10. A reestruturação da dívida externa é o instrumento primacial para um país na nossa situação e a sua invocação será mobilizadora se inserida num projecto mais vasto, cuja estratégia tem de ser claramente enunciada, ainda que os seus tempos não sejam à partida claros, já que a rebeldia democrática requererá muita astúcia negocial guiada pelo interesse nacional, ou seja, pelo interesse de uma imensa maioria social.

João Rodrigues

José Gusmão disse...

Duas escolhas necessárias... e suficientes?

Um Governo que queira falar de uma rotura com a política de austeridade tem de estar disponível para dois atos de soberania política: (a) uma restruturação da dívida que possa responder simultaneamente aos problemas do endividamento público e do endividamento externo e (b) a rejeição do Tratado Orçamental que, não apenas fixa um critério absurdo para o saldo estrutural, como fixa mecanismos de ajustamento draconianos, quando esse e outros critérios (como o da dívida) não são cumpridos.

Estes dois atos são imprescindíveis e estão associados.

Por um lado, A restruturação da dívida proporcionará uma maior margem de manobra para a condução da política orçamental através da redução dos encargos com a dívida, mas parece-me impensável que esse alívio seja suficiente para cumprir o Tratado Orçamental e ainda empreender o esforço contra-cíclico indispensável para assegurar a inversão da trajectória da nossa economia.

Por outro lado, a rejeição do Tratado Orçamental por si só não resolve os problemas de financiamento que o nosso nível de endividamento já suscita e que seriam agravados num contexto de conflito com as instituições europeias. De pouco serve recusar as regras do Tratado se não tivermos acesso ao financiamento necessário para as políticas públicas. O financiamento futuro é, aliás, uma das questões que terá, em qualquer caso, de ser acautelada num processo de restruturação da dívida conduzido pelo devedor.

Mas uma outra questão mais inquietante é a de saber se estes dois atos de soberania que, por si só, representam uma enorme confrontação com as instituições europeias existentes, são suficiente para lidar com os problemas da nossa inserção na zona Euro.

O autor explica no seu texto a centralidade da questão do endividamento externo na dinâmica de divergência e desagregação dentro da Zona Euro. Na realidade, o reequilíbrio recente da nossa balança corrente é inseparável do aumento do desemprego e da degradação do poder de compra da generalidade da população, e só nesse sentido é que pode ser considerado uma vitória da política de austeridade. Daí decorre um problema: uma política que reponha rendimentos e gere emprego, sendo indispensável para a recuperação da nossa economia e para a própria qualidade da democracia, tenderá a aumentar a procura e trazer de volta os défices externos. Não é razoável pensar que a reconversão da nossa economia possa resolver este problema em tempo útil, pelo menos no quadro atual das instituições e políticas europeias e depois de terem sido alienados instrumentos fundamentais para políticas públicas no plano nacional.

O que esta armadilha expõe é o problema constitucional europeu. A disfuncionalidade das instituições europeias é agravada pelo carácter irreformável de muitas das suas regras e disposições. Esse bloqueio institucional significa que é ingénua a ideia de que o normal funcionamento das instituições europeias poderia alguma vez desencadear as transformações necessárias, se é que estas ainda são possíveis e ainda podem colher apoio popular.

Em tempos em que os euro-entusiastas estão em vias de extinção em quase todo o continente, e perante o imobilismo da burocracia europeia, parece-me que se há esperança para o projecto europeu, ela só pode nascer da insubordinação, de preferência multilateral, dos Estados e dos povos que se encontram sob ataque. Mais vale cedo do que tarde.

Alfreda Cruz disse...

Construir um mandato para uma governação de esquerda conduzindo o país a uma escolha crucial entre a salvaguarda dos direitos sociais políticos e económicos contra a retórica dos ditames duma dívida e da vinculação ao euro, passa pela pedagogia das alternativas a que o CDA tem vindo sistematicamente a meter ombros sem que a difusão da mensagem ultrapasse a área de influência circunscrita aos actores sociais com literacia política suficiente para penetrar na complexidade das interacções que subjazem à teia de problemas com que os cidadãos se defrontam ou temem vir a defrontar-se no futuro próximo ou distante.
Daí a inconsciência cidadã às alternativas possíveis à política de subjugação das opções democráticas às da austeridade. Sem prejuízo do reforço do activismo político junto de todas as comunidades predispostas à discussão militante, será indispensável equacionar um plano de literacia política pressupondo a revitalização do Conselho Nacional da Educação com mandato de sensibilização junto de todas as instâncias educativas desde o ensino formal, repondo a educação para cidadania, linha programática que se esboroou, á educação-ao-longo-da-vida em todas as sedes que as assumam, repondo paralelamente as praxis sustentáveis das Novas Oportunidades transversais a todas as etapas da vida, cada vez mais longa e precária