Cultura abre sempre a porta à alternativa


por Tiago Ivo Cruz

Cultura abre sempre a porta à alternativa. Por essa razão qualquer governo autoritário, inclusivamente os democraticamente eleitos, apreendem instintivamente a necessidade de restringir, condicionar e submeter às suas ordens aquilo que se entende como serviços públicos de cultura. Dos teatros às bibliotecas, das coletividades às companhias amadoras e profissionais, o guião é sempre o mesmo. E tem sido espectacularmente bem sucedido. Trata-se de uma alteração estrutural e sem retorno daquilo que entendemos por política cultural. Este trajeto não começou com o atual governo. Francisco José Viegas limitou-se a encerrar um ministério condenado por sucessivos governos que com cada vez menos fizeram menos, sem surpresas. Mas este é o exemplo cabal do quão importante são as palavras. Porque foi política de regime, consensual entre liberais e alguma esquerda, que se podia fazer mais com menos. Uma fuga em frente que nos trouxe o criativismo, a diversificação das fontes de financiamento, o empreendedorismo, a submissão da cultura ao turismo e o património como produto de valor acrescentado. Mas naquilo que importa, no seu conteúdo prático, a criatividade não passou de uma desculpa para a desorçamentação, o empreendedorismo não passou de precarização de artistas, e a diversificação ministerial um esvaziamento da influência política daquilo que é Cultura. Coisas feias, pouco polidas mas que estão lá.

Importa por isso neste Congresso restabelecer o terreno perdido, reafirmar sem pudores as velhas ideias que continuam válidas, recuperar o sentido das suas palavras, rejeitando o dilaceramento ideológico que a criatividade, o empreendedorismo, e todos os sonhos que um modernismo sempre por vir inculcaram no cerne da política e da cultura na nossa sociedade, de Londres, Paris e Berlim directamente para Lisboa sem qualquer modelação que lhe esconda a face exceto para quem não queira olhar.

Não, Cultura e Turismo não são sinónimos nem devem viver debaixo do mesmo telhado ministerial. Olhemos para o que isso significa tanto para a Cultura mas também para o modelo de turismo que pretendemos desenvolver. Museus destituídos de equipas de investigação, porque o que importa é captar turistas em visitas únicas e não repetíveis, um turismo pirata que não exige novas exposições, muito menos serviços educativos e de proximidade para com a comunidade. Significa também um património sem investigação histórica e histórias reduzidas a panfletos e guias turísticos sem preparação. O que se exige é por isso aquilo que apesar de tudo se foi construindo com sucesso no Portugal democrático. Museus e património vivos, equipas de investigação que constroem conhecimento e o expõem ao público.

Não, a criatividade não é a resposta para os nossos serviços públicos de cultura. A criatividade é um modelo económico que exige concentração maciça de capital e uma rede de agentes culturais extensa e plural. Mas os seus proponentes esquecem-se sempre de um elemento fulcral. Em todas as cidades onde este modelo vinga isso acontece devido a um suporte de infra-estruturas públicas e financiamentos públicos maciços. De Londres e Berlim a Hong Kong, sem excepção. Pelo contrário, em Portugal a criatividade foi adotada como fuga política para esconder a desorçamentação extensiva dos serviços públicos. E não cabe à esquerda desculpar este estado de coisas e olhar para o lado. Os problemas enfrentam-se de frente, sem rodeios.

Por último, não o empreendedorismo não é a resposta para nada. O maior investidor deste país em Cultura dos últimos dez anos não foi o Estado, muito menos as empresas, mas sim os próprios artistas. Foram eles que num cenário de redução drástica de apoios contraíram empréstimos, submeteram-se a segundos e terceiros empregos mal pagos, para conseguirem financiar a sua atividade profissional. Fossem atores, músicos, escritores ou realizadores. Esta gente tem empreendedorismo a mais e a esquerda tem a responsabilidade de se bater pela sua dignidade. Isso faz-se também por combater aquilo que as palavras significam e não arranjar novas palavras para esconder as verdades feias. Não queremos precariedade ou trabalho partilhado. A alternativa é trabalho com direitos.A alternativa para a Cultura não é nada de novo nem espetacular. Comecemos por dar significado às velhas ideias, de forma simples e sem rodeios, por serviços públicos de cultura ancorados na pluralidade e na democracia.