por António Arnaut
A democracia, conforme a modelou a Constituição da República, tem vindo a ser habilmente destruída por sucessivos governos e por governantes, consciente ou inconscientemente, ao serviço dos grandes grupos económico-financeiros. A amputação gradual de direitos, constitucionalmente garantidos, está a destruir o Estado Social e o próprio Estado de direito.
O Estado de direito democrático é de densidade variável. Começou a ser esboçado em Portugal com a Constituição de 1822, que reconheceu certos direitos civis e políticos, embora limitados; fortaleceu-se com a Constituição republicana de 1911, que aboliu todos os privilégios de classe e alargou os direitos a todos os cidadãos, embora com limitações para as mulheres e analfabetos; consolidou-se com a Constituição de 1976 que, ao lado dos clássicos direitos civis e políticos - o direito de propriedade, a liberdade de pensamento, de culto e de opção partidária – reconheceu, no mesmo plano de dignidade jurídica, os direitos sociais, económicos e culturais.
O nosso regime democrático tem assim por objectivo, nos termos do art.º 2º da Lei Mestra, “a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Para o efeito, o Estado deve, designadamente, “promover o bem estar e a qualidade de vida povo e a igualdade real entre os portugueses “ (art.º 9-d), promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente, através da politica fiscal”, “zelando pela eficiência do sector público”, “pelo crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões”, reprimindo “os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas dos interesse geral” (art.º 81-alineas a) a e)). A Constituição da República impõe ainda que, para alcançar os objectivos de igualdade e de justiça social, a fim de construir uma “sociedade livre, justa e solidária”, baseada na dignidade da pessoa humana (art.º 1º), o Estado deve criar e manter um sistema de segurança social (art.º 63) um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito, que garanta o acesso de todos os cidadãos (art.º64º) e um sistema público de ensino, assegurando o ensino básico universal, obrigatório e gratuito, assim como a progressiva gratuitidade de todos os graus de ensino. São estes direitos constitucionais, e também o direito ao trabalho e à habitação, que caracterizam o nosso Estado Social, a que pode chamar-se, pleonasticamente, Estado Social de direito democrático.
Ora, a política seguida nos últimos anos, especialmente por este governo, visa a destruição do Estado Social e do próprio Estado de direito. É uma política assumidamente ultraliberal, antipatriótica e inconstitucional, manifestamente lesiva das classes mais desfavorecidas, contrária à justiça social, à igualdade real entre os portugueses e ofensiva da dignidade e dos profundos interesses do Povo e da Pátria.
A síntese dos direitos económico-sociais acima referidos, mostra que o governo está a violar grosseiramente a Constituição e a perder a legitimidade democrática. Quanto a esta, é preciso dizer que há uma legitimidade originária, decorrente de eleições, e uma legitimidade confirmativa, que consiste em governar segundo o programa sufragado pelos eleitores e, mais importante, de acordo com os imperativos constitucionais. Darei apenas alguns exemplos que provam a perda da legitimidade constitucional do governo.
A Constituição prevê a existência de um sector público de produção (art.º 82) a defesa da sua eficiência (artº.º 81-C), bem como a propriedade pública dos recursos naturais (art.º 80º). Ora, o governo já privatizou o sector energético e propõe-se privatizar as águas, ambos sectores estratégicos que deviam ser inegociáveis. Anunciou também, além de outras, a privatização da RTP contra o expressamente determinado pelo art.º 38º, que impõe ao Estado a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e televisão (n.º 5), no pressuposto da existência de “meios de comunicação social do sector público” (n.º 6).
Por outro lado, a Escola Pública e o Serviço Nacional de Saúde estão a ser desmantelados, de modo a servirem apenas a população economicamente mais débil, desviando para o sector privado as classes privilegiadas. Este facto implica a sua degradação e a transformação em serviços públicos residuais. É um crime contra a dignidade humana, um atentado às conquistas de Abril e um desrespeito escandaloso pela Constituição da República.
As leis laborais, derrogando direitos arduamente conquistados pelos trabalhadores, a redução das prestações sociais e as medidas ultimamente anunciadas, tributando o trabalho em benefício directo do capital, e aumentando iniquamente os sacrifícios dos mais desfavorecidos, convocam os democratas portugueses à reflexão e à acção. A crise que sofremos e os condicionalismos impostos pela Troika não impedem que o governo cumpra a Constituição, nosso Contrato Social a que todos estão obrigados. A Lei Fundamental estabelece a “subordinação do poder económico ao poder político democrático” (art.º 80º-a)) e determina que “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo”).
Todas estas normas constitucionais têm sido frontalmente violadas ou contornadas. Quando a Constituição se torna letra morta, a democracia fica letalmente ferida.
O governo subverte pois os mais elementares valores fundacionais da democracia portuguesa, alarga as desigualdades, aumenta as injustiças, apoia a agiotagem, corrói as instituições, desprestigia o país e põe em causa, não apenas o Estado Social, mas o próprio Estado de Direito.
O Estado de Direito é, em termos simples, o Estado dos direitos e a garantia do seu efectivo exercício. Na medida em que direitos fundamentais são reduzidos ou sonegados, como o direito ao trabalho, à habitação, à saúde ao ensino e à segurança social, favorecendo-se em contrapartida, os grandes grupos económicos e o capital especulativo em negociatas obscuras, o governo actua contra a Constituição e perde a legitimidade originária. O que está em causa é assim a sobrevivência da própria democracia.
A hora é grave e não se compadece com sensibilidades pessoais, preconceitos ideológicos ou calculismos políticos. É preciso trabalhar convictamente por uma alternativa democrática. É preciso salvar Portugal e a democracia. Este imperativo moral, cívico e patriótico impõe, como antes do 25 de Abril, a unidade de todos os democratas. O nosso programa e a nossa plataforma de encontro e de acção é a Constituição da República. Antes que seja tarde. Antes que o sofrimento do nosso povo e o clamor dos oprimidos inunde as ruas e transborde numa revolta justa, mas de consequências imprevisíveis. Há um limite para os sacrifícios, para a incompetência e para a iniquidade. Há um limite para a paciência dos humilhados.