A sociedade portuguesa está a tornar-se uma sociedade cada vez mais violenta. E não é só a violência física, mas outros tipos de violência não menos preocupantes que enfraquecem de forma alarmante o tecido humano do país. São elas a pobreza, o desemprego, a insegurança, a ignorância, a discriminação.
O empobrecimento crescente tem as suas raízes nos cortes salariais e nos despedimentos em massa, tal como na incapacidade de o pequeno comércio (que constitui a maior faixa económica da economia portuguesa) manter as suas portas abertas. A crescente demissão do Estado das políticas de saúde pública é também uma ameaça gravíssima à qualidade de vida dos cidadãos (a título de exemplo, bastaria a recente proposta de cortes no apoio à medicação para as doenças terminais).
A educação e a cultura ressentem-se, naturalmente, do empobrecimento das famílias; a esse empobrecimento acresce-se o não menos importante empobrecimento das escolas e das universidades, com os cortes sucessivos de verbas, o apoio cada vez mais reduzido a estudantes com dificuldades, ou as disposições de aparente natureza científica que promovem o decréscimo na qualidade do ensino e da investigação.
Perante este quadro, não é de estranhar que mais outro tipo de violência se instale: a discriminação. E bastaria pensar-se somente na discriminação de género. As mulheres representam 70% dos pobres em todo o mundo, Em Portugal, quase 40% das famílias são providos por mulheres chefes de família, e grande parte destas famílias não recebe pensão regular do pai. A expressão “feminização da pobreza” não é, pois, uma expressão retórica; é uma realidade. No momento presente, é largo o hiato entre mulheres de diferentes níveis sociais e é praticamente inexistente uma consciência de solidariedade e partilha entre elas. Por isso, são ainda as mulheres as guardiãs da moral, segundo o ponto de vista de muitos homens, mas também segundo o ponto de vista das próprias mulheres, as quais se esquecem (ou não sabem) que são igualmente elas as mais pobres de entre os mais pobres, as quais têm uma acrescida dificuldade em reconhecer e reclamar direitos. Por estas razões, infelizmente, não é ainda anacrónico falar da causa das mulheres, porque falar dessa causa dá conta de uma reacção social que se liga a uma reacção de defesa de uma sociedade que terá que admitir que o caminho da conquista de uma relação simétrica entre as mulheres e os homens será a maior revolução da Humanidade.
Fundamental neste momento tão grave por que passamos será uma mudança radical de atitude por parte dos partidos que alternam o poder nos governos: deixarem de pensar em termos eleitoralistas e, sobretudo, a curto prazo. E o primeiro gesto de combate à violência terá, a meu ver, que ser um esforço em várias frentes, que passe pela não redução dos apoios à saúde e ainda pelo investimento na educação. O Estado tem que tomar esta área como prioritária. Só um povo educado e com uma escolaridade de qualidade consegue pensar, resolver problemas e propor soluções.
No campo do ensino básico e secundário, as turmas devem ser drasticamente reduzidas, reduzindo-se assim também a ratio professor/aluno e investindo-se num ensino público de qualidade, que obviamente só começará a dar frutos daqui a uma geração; mas este é um primeiro passo para o combate à ignorância e ao quase analfabetismo funcional a que se assiste novamente. Uma outra sugestão tem a ver com o ensino superior. Uma escola não é uma empresa, um ensino de qualidade não é sinónimo de propinas altíssimas – as propinas deverão ser reduzidas a quantias simbólicas. Para que tal aconteça, é necessário que o Estado invista, ele próprio, nas Universidades, que não devem, não podem, ser auto-sustentáveis, sob pena de baixarem os seus critérios de qualidade, de forma a terem mais “clientes”. Se há faculdades, como as das ciências, capazes de gerar protótipos, ou de fazer parcerias com empresas, criando assim receitas, outras há, como as das humanidades, cuja principal função e mais-valia é o ajudar a pensar, a discutir e a questionar.
É gravíssimo quando as áreas das humanidades (as que lidam mais directamente com a matéria cultural e cívica) são tão fragilizadas; quando a Filosofia, as Belas-Artes ou as Literaturas são consideradas inferiores quando comparadas às Engenharias ou à Gestão. E é gravíssimo, porque se esquece o valor real que o ser humano representa, tal como se negligencia a importância de investir na capacidade humana de encantamento, de relação com a beleza, de produção de pensamento e inquirição, de solidariedade e bondade – palavras que se encontram alheadas do discurso político e que mereciam ser para ele trazidas novamente, na convicção mesma da etimologia da palavra “política” (de polis, cidade). As matérias humanas consideradas supérfluas, como o pensar ou o sonhar, podem ser, tal como a política, o espaço da comunhão e da comunicação reais.
Penso na frase de Hannah Arendt: “Vivermos juntos no mundo significa essencialmente que há um mundo de coisas entre aqueles que o têm em comum, tal como uma mesa está colocada entre os que se sentam à sua volta”. Dependendo de como for usada, uma mesa pode ou dividir, ou aproximar. O que nos estão agora a fazer é a usar essa mesa como violência, distribuindo a alguns portugueses lugares de um vergonhoso privilégio, enquanto a muitos portugueses se dão lugares de feroz desprotecção, e a outros ainda não se dão quaisquer lugares. Essa mesa está a ser, pois, utilizada como arma de guerra, como se houvesse, para usar a expressão de Judith Butler, “vidas menos choráveis”, relativamente às quais o Estado e as oligarquias financeiras se permitem exercer a mais profunda violência.
Toda a violência (o exercício de todos os tipos de violência), porque se baseia na exclusão da interacção e da cooperação com os outros, destrói o crescimento do indivíduo e, portanto, de um povo. Seria necessário recordar aqui Maria de Lurdes Pintasilgo: “O que vemos hoje quando dizemos política (…), aquilo a que chamamos ‘democracia’ não é política. (…) Falta-lhe o que conta na definição do humano e que põe tudo no seu lugar: o afecto — que organiza a vida interior de cada um e constrói as relações entre as pessoas”.
Por isso, na vida política, seria preciso reclamar a “acção justa, a equidade enquanto injustiça a favor dos que são marginalizados”. De forma a que a mesa possa ser um lugar de partilha do presente e de construção do futuro.