por Cipriano Justo*
A relação entre o estado de saúde e o nível socioeconómico está actualmente bem estabelecida, podendo esta relação ser bidireccional: quando o estado de saúde influencia a posição socioeconómica verifica-se um efeito de selecção; quando é a posição socioeconómica a influenciar o estado de saúde verifica-se um efeito de causalidade. Embora os dois tipos de relação estejam sempre presentes, consoante as circunstâncias socioeconómicas e epidemiológicas, assim predominará um dos efeitos.
Para explicar os efeitos de selecção e causalidade tem de se distinguir entre aqueles que decorrem de decisões individuais (hábitos alimentares, sedentarismo, tabagismo, consumo excessivo de álcool), dos que são influenciados pela estratificação social (habilitações literárias, qualificação profissional, emprego, rendimento, qualidade da habitação, acesso aos cuidados de saúde). Maioritariamente são estes os principais determinantes que explicam o nível de saúde de uma população. À excepção da idade e do património genético, todos os restantes determinantes são modificáveis, em grau variável, exigindo para o efeito a acção convergente e articulada de todos os actores sociais.
Considerando que em saúde as respostas são dadas tanto por profissionais e tecnologias como por outros actores sociais que se combinam e organizam consoante as competências e as capacidades para responder a necessidades, os dispositivos organizacionais que sejam inclusivos dessa interdisciplinaridade e multiprofissionalidade estão melhor apetrechados do que aqueles que criam barreiras à visão compreensiva da saúde. Intervir na actualização da administração da saúde é, por esse facto, reconfigurar a organização da infra-estrutura onde as necessidades em saúde encontram as respostas mais adequadas, acessíveis e aceites.
A actualização da administração da saúde deve visar a promoção do alinhamento das respostas, no lugar e no tempo certo, com as necessidades das diferentes fases do ciclo vital. Havendo necessidades cujas respostas devem ser dadas por outros actores sociais em razão da sua multicausalidade, toda a oferta de cuidados de saúde deve estar ordenada, organizada e planeada para produzir a efectividade máxima, traduzida em ganhos em saúde, consideradas as alternativas mais acessíveis, mais efectivas e melhor aceites pela comunidade.
A reorganização do sistema de saúde e do Serviço Nacional de Saúde, em particular, em subunidades, contribui para reduzir a inércia e as opacidades acumuladas ao longo de décadas num modelo muito pouco sistémico. Trata-se de criar e desenvolver uma rede de cuidados de saúde em função dos vários objectivos a atingir, tendo como determinantes os contextos sócio-ambientais e epidemiológicos de cada uma dessas subunidades. É na socialização tanto dos problemas como das respostas que se pode manter um tal sistema no sentido certo para atingir os objectivos desejados. A lógica que preside à criação dessas subunidades de saúde é a de pensar a administração da saúde segundo um dispositivo matricial de proximidade em que se cruzam funções e necessidades, evidenciadas pela análise epidemiológica e pela procura.
A rede de subunidades de saúde, designadas por Comunidades Locais de Saúde (CLS), ao estabelecer uma rede intersectorial de análise dos problemas e de aplicação das soluções, definir um quadro de referência de contratualização dos serviços prestados, fixar metas locais, desenvolver processos cooperativos de utilização de todos os recursos da saúde, promover o relacionamento centrado na informação partilhada, na negociação, na complementaridade e na cooperação, visa obter resultados demonstráveis de ganhos em saúde, contribuindo desse modo para diminuir as desigualdades em saúde e melhorar o nível de saúde das comunidades.
Para além do reforço do papel das comunidades e dos indivíduos em matéria de escolhas e decisões alternativas sobre a saúde, os argumentos que melhor justificam a criação das CLS são a promoção e a protecção da saúde ao longo da vida, a melhoria do acesso aos serviços de saúde e o reforço da continuidade dos cuidados. Além disso, a CLS orienta a procura de acordo com um circuito lógico, mais conveniente para os utilizadores, mais racional para os prestadores e mais económico para o sistema. Evita duplicações e redundâncias, melhora a qualidade dos cuidados de saúde e aumenta o seu grau de articulação. Permite a cooperação, dentro de uma estratégia comum, de todos os intervenientes consoante a sua vocação e independentemente da propriedade dos meios de produção, aproveita sinergias e ganha massa crítica para a resolução de problemas comuns, aumenta a eficácia e a rapidez das decisões. O desafio organizacional ao qual as CLS procuram dar resposta é o de substituir progressivamente a actual super-estrutura piramidal de hierarquias verticais do SNS por uma verdadeira infra-estrutura de saúde fortemente implantada e participada pelas comunidades e prestadores locais.
* Professor Universitário.