O fim da troika, o regresso aos mercados, o programa cautelar... e outros mitos

Em Maio termina o período de vigência do Programa de Ajustamento acordado em 2011 entre o governo português e a troika (BCE, FMI e Comissão Europeia). Segundo nos dizem, a intervenção externa aconteceu porque o Estado português deixou de poder financiar-se nos mercados da dívida pública. No entanto, a troika deixa o país com uma dívida ainda maior e sem acesso garantido aos mercados.

Para servir esta dívida – isto é, para pagar juros e financiar o reembolso da dívida que vence nos próximos anos – o governo português tem dado a entender que Portugal dispõe de duas alternativas: dispensar qualquer espécie de “ajuda externa”, regressando aos mercados (saída limpa); ou recorrer “apenas” a um programa cautelar. Será que alguma destas alternativas serve os interesses de Portugal?

O insustentável peso da dívida

Na análise realizada no contexto da 8ª e 9ª avaliações do Memorando de Entendimento, o FMI assumia um cenário de sustentabilidade da dívida pública assente nos seguintes pressupostos: um saldo orçamental primário (receitas menos despesas, exceto juros) próximo de 3% do PIB a partir de 2016, um crescimento real do PIB de 1,8% ao ano, uma taxa de inflação de 1,8% e uma taxa de juro dos novos títulos da dívida pública de 3,8%. Neste cenário, a dívida poderia reduzir-se para 60% do PIB em vinte anos, conforme impõe o Tratado Orçamental da UE.

Note-se que o cenário apresentado pelo FMI não corresponde a uma previsão sobre a evolução da economia portuguesa. O que o FMI faz não é mais do que identificar as condições que seriam necessárias para que a dívida pública fosse sustentável. Mas serão essas condições realistas? Vejamos.
Para que a economia portuguesa crescesse a uma taxa real próxima de 2% ao ano seria necessário que a procura interna crescesse ou que a procura externa líquida (exportações menos importações) aumentasse de forma muito acentuada. No entanto:

  • O crescimento da procura interna é incompatível com a austeridade orçamental inerente a um saldo orçamental primário de 3%. Além disso, importa ter presente que o elevado nível de endividamento das famílias e das empresas portuguesas, assim como os níveis historicamente elevados de desemprego e emigração, continuarão a limitar por muito tempo os níveis de consumo e de investimento. 
  • Quanto ao crescimento da procura externa líquida, ela depende não apenas da dinâmica das exportações, mas também das importações. Só num cenário de recessão duradoura é que as importações não voltarão a aumentar – mas esse cenário contradiz a hipótese de crescimento de 2% ao ano. Para que a procura externa líquida aumente o suficiente de modo a compensar o fraco dinamismo do mercado interno e a estabilização das importações seria necessário que se verificasse um salto inaudito nas exportações nacionais (que não estivesse associado a um forte aumento das importações, como acontece no caso da refinação do petróleo, que explica mais de metade do aumento das exportações no último ano).

Ou seja, nas circunstâncias atuais, é pouco credível um cenário de crescimento anual do PIB de 2% ao longo dos próximos anos. Sem esse crescimento só é possível assegurar um saldo orçamental primário de 3% através cortes abruptos e permanentes nas despesas públicas que contam, isto é: saúde, educação e prestações sociais. A tentativa de proceder a esses cortes não só vai restringir ainda mais o crescimento económico, como vai comprometer a democracia e a justiça social.

Importa, também, ter presente que a taxa de inflação ao longo dos últimos meses tem estado próxima de zero – longe, portanto, do valor assumido no cenário do FMI (1,8%). Uma vez que a dívida se expressa em valores nominais, quanto mais lento for o ritmo de subida dos preços, mais difícil se torna pagar a dívida acumulada.

A dívida pública não é sustentável e o que vem sendo feito para a conter e reduzir, na verdade, tem vindo a torná-la ainda menos sustentável.

O governo vai aos mercados para ganhar votos

Do ponto de vista financeiro, só é razoável o Estado português financiar-se autonomamente através dos mercados financeiros se existirem investidores dispostos a adquirir títulos de dívida pública em condições de preço (taxa de juro) e prazo (maturidades) razoáveis.

As condições exigidas pelos investidores internacionais dependem de um conjunto de fatores mais ou menos especulativos, onde se destaca a perceção sobre os riscos de incumprimento do Estado português enquanto devedor. A perceção sobre o risco de incumprimento depende, por sua vez, da sustentabilidade da dívida pública e da existência de mecanismos para lidar com situações de falta de liquidez dos Estados.

Até 2010 os investidores internacionais acreditaram que as instituições europeias nunca deixariam um Estado falir, pelo que não se preocupavam muito com a sustentabilidade da dívida pública (apesar de haver sinais de insustentabilidade em alguns países). A partir do início de 2010, depois de se tornarem evidentes os problemas financeiros da Grécia, perante as mensagens equívocas dos governos alemão e francês sobre um eventual incumprimento grego, e face ao forte crescimento das dívidas públicas resultante da crise financeira de 2007/2008, os investidores internacionais passaram a assumir como real a possibilidade de perderem dinheiro com títulos da dívida dos países periféricos da zona euro. O resultado foi a chamada ‘crise das dívidas soberanas’, no contexto da qual as taxas de juro sobre os títulos de dívida pública dos países periféricos da zona euro aumentaram de forma acentuada, impossibilitando os Estados respectivos de se financiarem através dos mercados.

Como é sabido, a forte instabilidade financeira na zona euro durou até ao verão de 2012, quando o presidente do BCE, Mario Draghi, ameaçou utilizar os recursos da instituição que dirige para evitar o aumento dos custos de financiamento dos Estados. A partir daí, as taxas de juro dos mercados de dívida soberana foram caindo, ajudados pela disponibilidade de liquidez financeira (decorrente dos avultados apoios ao sector bancário), pela ausência de alternativas mais atractivas de investimento (devido ao desempenho medíocre da economia europeia) e, mais recentemente, pela instabilidade financeira nas economias emergentes.

Os investidores internacionais, por ora, parecem acreditar que as instituições europeias farão tudo para evitar que qualquer Estado Membro entre em falência. No entanto, apesar da queda acentuada verificada no início de 2014, as taxas de juro dos títulos da dívida pública portuguesa a 10 anos mantêm-se acima dos valores observados antes da ‘crise das dívidas soberanas’, próximo dos 5%. Por outras palavras, apesar das circunstâncias internacionais favoráveis, o custo de financiamento do Estado português através dos mercados mantêm-se muito acima dos valores que, segundo o FMI, garantiriam a sustentabilidade da dívida pública portuguesa – mesmo se ignorarmos que as perspectivas de crescimento e de inflação são muito menos favoráveis do que pressupõe o cenário apresentado pelo FMI.

Significa isto que o governo põe de parte a possibilidade de uma ‘saída limpa’ do programa de ajustamento (isto é, sem recurso a mais empréstimos das instituições europeias)? Não.

O governo poderá optar por uma ‘saída limpa’ com objectivos eleitoralistas. A ‘saída à Irlandesa’ seria apresentada como o reconhecimento da ‘solidez da situação económica e financeira do país’ (ou, por outras palavras, do ‘sucesso do programa de ajustamento’) e como significando ‘o fim do protectorado’. Importa, porém, ter presente que tal opção não aumentaria a margem de liberdade das decisões nacionais, pelo contrário: Portugal continuaria refém de uma dívida asfixiante, financiando-se a taxas de juro patentemente insustentáveis. O resultado mais provável deste processo seria o reconhecimento da necessidade de um segundo resgate dentro de algum tempo, logo que as reservas de tesouraria do Estado português se esgotassem.

Nas condições presentes, o Estado português só conseguirá financiamento (isto é, contrair mais dívida) para pagar juros e amortizar a dívida passada em condições menos insustentáveis através de uma intervenção ainda maior das instituições europeias. É aqui que chegamos ao ‘programa cautelar’.

Programa cautelar: o novo nome do programa da troika

De acordo com os documentos do Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE), a quem cabe financiar e gerir estes programas de financiamento, há duas formas de intervenção previstas: o Precautionary Conditioned Credit Line (PCCL, a versão ‘suave’ do programa cautelar) e o Enhanced Conditions Credit Line (ECCL, ou versão ‘dura’). Ambos têm sido referidos como ‘programas cautelares’. Na verdade, o primeiro corresponde, de facto, a uma linha de crédito cautelar, enquanto o segundo não se distingue substancialmente de um resgate. As diferenças entre a PCCL e a ECCL são as seguintes:

  • O acesso ao PCCL (a versão ‘suave’) pressupõe que os Estados já se financiam nos mercados em condições que asseguram a sustentabilidade da dívida pública. Para além desta condição, o recurso ao PCCL pressupõe que o país apresenta uma posição sustentável das contas externas e um sistema financeiro estável. Caso os Estados cumpram tais condições, o MEE poderá, para além de conceder um empréstimo ao Estado português, participar nas emissões de dívida pública (o chamado ‘mercado primário), adquirindo até 50% da dívida emitida, para reduzir o risco de uma emissão mal sucedida. Isto significa que o Estado pode financiar-se através dos mercados, ainda que de forma assistida.
  • O ECCL (a versão ‘dura’) está previsto para países que não cumpram alguma das condições para aceder ao PCCL. Neste caso, a intervenção do MEE faz-se através de um empréstimo, ficando o Estado em causa obrigado a adotar ‘medidas corretivas’. Esta solução dispensa, no imediato, o recurso ao financiamento através dos mercados por parte do Estado durante o período de duração do programa.

Em ambos os casos terá de ser assinado um Memorando de Entendimento e o Estado português ficará sujeito a uma ‘supervisão reforçada’ durante a vigência do programa (12 meses, prorrogáveis por mais dois períodos de 6 meses), para além de se comprometer a cumprir as orientações europeias em matéria orçamental (incluindo o Tratado Orçamental).


A forma vaga e até ambígua como estão redigidos os documentos oficiais do MEE, associada à incerteza sobre a evolução da situação económica e financeira, não permitem antecipar qual a solução que as instituições europeias e o governo português quererão adoptar, caso seja posta de lado a hipótese de uma ‘saída limpa’. Tudo dependerá da evolução económica e financeira até lá, bem como da flexibilidade com que forem interpretados os critérios atrás descritos.

Se as seguintes condições se verificarem até Abril será mais provável a negociação de um PCCL (a versão ‘suave’ de um programa cautelar):

  • os indicadores macroeconómicos não se degradam; 
  • as taxas de juro da dívida a 10 anos nos mercados secundários mantêm-se em torno ou abaixo de 5%; 
  • o Estado português emite dívida a 10 anos através de um leilão aberto (em vez de uma operação contratada com um sindicato bancário, como aconteceu em Fevereiro de 2014), obtendo taxas de juro em torno ou abaixo de 5%; e 
  • não são dados sinais de fragilidade do sistema bancário até Maio. 

Note-se que a verificação destas condições não significa que os critérios previstos para um país ter acesso ao PCCL estão cumpridas (no caso português, continuaria a ser questionável a sustentabilidade das dívidas pública e externa), mas poderia ser o suficiente para que os dirigentes europeus concedessem esse ‘prémio’ ao governo português.

De facto, do ponto de vista político, para o governo português seria mais vantajoso o PCCL (a versão ‘suave’ do programa cautelar) do que o ECCL (a versão ‘dura’): o acesso ao PCCL seria apresentado como a opção que implica ‘menos interferência externa’ e como um ‘reconhecimento esforços dos portugueses’ por parte das instituições europeias.

Do ponto de vista das condições de financiamento do Estado, o PCCL seria distinto do ECCL caso o governo optasse por solicitar ao MEE a intervenção no mercado primário de dívida, em vez de se limitar a solicitar um empréstimo. A disponibilidade do MEE para intervir no mercado primário permitiria ao Estado português financiar-se (pelo menos parcialmente) junto de investidores internacionais, o que poderia ajudar a atrair outros investidores no futuro, facilitando o financiamento por esta via. No entanto, é expectável que as condições exigidas pelos investidores internacionais para adquirir títulos da dívida portuguesa seriam menos favoráveis às que estariam associadas a um simples empréstimo do MEE ao Estado Português.

Nesse sentido, só num cenário de queda muito significativa dos juros a opção pelo PCCL (a versão ‘suave’) poderia revelar-se mais vantajosa do ponto de vista financeiro para o país do que o acesso ao ECCL (a versão ‘dura’). Haverá quem argumente que o PCCL seria preferível na medida em que implicaria menor interferência externa nas decisões nacionais. No entanto, o acesso a qualquer um dos tipos de programa pressupõe sempre a negociação de um novo Memorando de Entendimento, acarretando condicionalidades sobre as políticas nacionais. Num caso ou noutro, tratar-se-á sempre de impor reduções substanciais e permanentes de despesa – ou seja, a delapidação da educação, da saúde e da protecção social públicas.

Em resumo, por razões eleitoralistas, o governo preferirá uma ‘saída limpa’ a um programa cautelar e, caso opte pelo segundo, preferirá uma ‘versão suave’ a uma ‘versão dura’ do programa. Mas as alternativas que são preferíveis para o governo são também as mais desajustadas do ponto de vista financeiro: os juros mais elevados acabariam por traduzir-se mais tarde em  austeridade reforçada. As escolhas para o governo parecem estar reduzidas a isto: austeridade auto-imposta ou austeridade assistida.

As alternativas à destruição do Estado Social, dos direitos laborais e da democracia portuguesa

A inversão do caminho da devastação social e económica não passa nem por uma ‘saída limpa’ nem por um programa cautelar. Portugal precisa de uma reestruturação da dívida pública portuguesa que seja consentânea com uma política de relançamento do emprego, de valorização do trabalho e de restabelecimento dos direitos que asseguram uma sociedade decente. Tal restruturação implica: um significativo corte sobre o capital em dívida, da ordem dos 50% a 60% (isentando os pequenos aforradores e instituições públicas); uma extensão das maturidades (no mínimo 40 anos) e taxas de juro indexadas ao ritmo de crescimento económico.

Não podemos aceitar a perpetuação de Memorandos de Entendimento que empobrecem a economia, a sociedade e a democracia – e que não resolvem os desequilíbrios macroeconómicos, nem os problemas estruturais que estão na base da crise da zona euro. A solução para a disfuncionalidade da União Económica e Monetária europeia não passará pela destruição dos princípios democráticos e dos direitos sociais e laborais que levaram décadas a construir.