O OE é contraproducente porque persiste na estrada da recessão económica e do desemprego, como se essas pudessem constituir as bases para a sustentabilidade das contas públicas.
Nos últimos 3 anos, as medidas de austeridade retiraram cerca de 20 mil milhões de euros à economia em aumentos de impostos e cortes na despesa pública. Nesses mesmos 3 anos o défice não se reduziu mais do que 6 mil milhões de euros, enquanto o PIB caiu em mais de 7 mil milhões de euros e a dívida pública não parou de aumentar.
Criou-se menos riqueza, destruíram-se mais de 450 mil postos de trabalho, 30% de empresas estão em situação de incumprimento perante a banca, alastrou-se a miséria, a precariedade e a certeza de um futuro incerto. E, no entanto, a dívida pública portuguesa não é hoje mais sustentável do que era há 3 anos – pelo contrário. E é por esta estrada que o governo pretende prosseguir.
Além de contraproducente, este OE é desonesto
Desde logo, é desonesto porque assenta no pressuposto de um crescimento do consumo privado e do investimento em 2014. No entanto, tal pressuposto é incompatível com o aumento do desemprego (previsto pelo próprio governo), o aumento da emigração, o corte de salários e pensões, ou actuais níveis de endividamento das famílias e das empresas.
Para justificar o optimismo desmedido do cenário apresentado, o governo resolveu anunciar ao país um ‘milagre económico’. Um milagre que o governo vislumbra no aumento das exportações, rapidamente evocado como demonstração do sucesso da estratégia até aqui seguida, como a luz que tardava em aparecer ao fundo do túnel.
Vale a pena termos estes números bem presentes:
∙ 70% do aumento das exportações de mercadorias verificado entre janeiro e agosto é explicado por um único fator: o aumento de capacidade da refinaria da GALP em Sines (de resto um projecto de investimento que nada teve a ver com actual programa de ajustamento);
∙ O contributo do turismo para o aumento das exportações é maior do que o de todos os restantes sectores de actividade económica juntos, com a excepção da refinação de petróleo.
Não é um investimento pontual numa indústria fortemente importadora, ou o bom desempenho de um sector volátil e sazonal, por muito relevantes que sejam, que vão tirar a economia portuguesa do sufoco. Por muitas vezes que o governo nos tente convencer do contrário, a economia portuguesa não está no bom caminho.
O governo também repete à exaustão que este é o OE que nos levará à recuperação da soberania política do país. Esta é a terceira grande desonestidade deste orçamento.
Há dois anos e meio, o governo procurava convencer os portugueses de que os sacrifícios que estavam a ser impostos teriam como resultado a recuperação da capacidade de financiamento do Estado português através dos mercados.
Três anos de austeridade depois, Portugal não está mais capaz de se financiar autonomamente do que estava, pelo contrário.
Sob a forma de programa cautelar ou de segundo resgate, o resultado do programa de ajustamento é a continuação da dependência do Estado português face às instituições europeias para obter o financiamento necessário ao seu funcionamento e ao desenvolvimento do país.
Quando o governo nos fala na recuperação da soberania política do país, temos de perguntar:
∙ Deixaremos de ter de estar sujeitos às condições que nos são impostas pelo BCE e pelo Eurogrupo para continuarmos a ter acesso a financiamento externo?
∙ Teremos maior margem para negociar prazos, juros e montantes da dívida, tendo em vista libertar recursos para o desenvolvimento económico e a criação de emprego?
∙ Teremos a escola pública, o SNS, o sistema público de pensões, os direitos laborais, os salários e as pensões a salvo da chantagem externa?
As respostas são: não, não e não. A recuperação da soberania política do país através do prolongamento da austeridade é um embuste. Mais um dos embustes de um orçamento profundamente desonesto.
Finalmente, além de contraproducente e desonesto, este orçamento é também cobarde
Mesmo mantendo-se fiel à estratégia da austeridade, o governo poderia ter optado por soluções orçamentais que envolvessem menores riscos de inconstitucionalidade e menores riscos de recessão.
Ao invés, o governo optou por desafiar o Tribunal Constitucional (TC), muito para lá do que seriam os riscos normais da governação.
Sejamos claros: o governo espera, e parece até desejar, que o TC considere inconstitucional este orçamento. E os objectivos são evidentes:
∙ Primeiro, o governo faz tudo por criar um bode expiatório para o insucesso das suas políticas. Daqui a uns meses, a economia vai continuar moribunda, o desemprego ainda mais elevado e o desespero generalizado. O governo faz tudo o que pode para poder atribuir as culpas a terceiros.
∙ Ao mesmo tempo, o governo espera com isso estar em melhores condições para impor a sua 'Reforma do Estado', leia-se: a destruição da escola pública para todos, do SNS, do sistema público de pensões.
Dizemos que este orçamento é contraproducente, desonesto e cobarde.
Mas este orçamento também é esclarecedor
Quando há cerca de um ano e meio lançámos a convocatória do Congresso Democrático das Alternativas (CDA), fizemo-lo para afirmar o que para muitos não era ainda evidente:
∙ que o alinhamento do governo com a estratégia da troika visava desmantelar direitos, atingir os rendimentos do trabalho, privatizar serviços e bens públicos, esvaziar a democracia, desfazer o Estado e a sua capacidade para organizar a sociedade em bases colectivas;
∙ que o que estava à vista era, e cito, “um novo programa de endividamento, com austeridade reforçada”;
∙ que não existiriam possibilidades para o desenvolvimento do país sem uma reestruturação da dívida pública, resultante de uma negociação determinada com todos os credores.
Na altura, o discurso do governo era hegemónico na comunicação social e até na opinião pública, sob a bitola de um ministro das finanças que nos explicava – em conferências de imprensa pausadas e didácticas – que a austeridade era a via para a nossa redenção.
Dois orçamentos falhados depois, Vítor Gaspar partiu – e já pouco resta daquela crença desmesurada nas virtudes de uma austeridade que nunca foi expansionista.
O que soava quase herético há um ano e meio, impõe-se hoje como uma evidência: a estratégia do governo e da troika não visa tornar a dívida sustentável – hoje já poucos acreditam que o seja sem uma reestruturação profunda.
O objectivo é mais ambicioso: consiste em proceder a uma reconfiguração da economia e da sociedade portuguesas em que:
∙ o trabalho fica reduzido à sua condição de mercadoria descartável;
∙ os direitos fundamentais deixam de ter valor intrínseco, passando a estar sujeitos a considerações financeiras;
∙ a dívida pública se vai perpetuando, alimentando uma chantagem contínua sobre o regime democrático.
O CDA teve razão numa altura em que o discurso do governo era ainda hegemónico e muitos tardavam em repudiá-lo
Com o trabalho desenvolvido, o Congresso contribuiu, a par de muitas outras organizações e movimentos sociais e políticos, para esclarecer os pressupostos e as consequências da estratégia da troika.
Contribuiu para colocar no centro da discussão pública:
∙ a defesa da reestruturação da dívida como eixo fundamental da estratégia de saída da crise;
∙ a defesa do Estado Social e da sua qualificação como base fundadora de qualquer alternativa ao atual rumo;
∙ a necessidade de alterações profundas no processo de integração europeia.
O Congresso fez mais: estimulou o debate, contribuiu para o aprofundamento programático, favoreceu o encontro entre diferentes sensibilidades políticas que convergem na rejeição da estratégia do governo e da troika.
Muito foi feito, mas ainda muito está por fazer
O CDA propôs-se contribuir para a construção de “uma alternativa à política de desastre nacional consagrada no memorando da troika” promovendo uma ampla convergência “na acção política para o verdadeiro resgate democrático de Portugal”.
Entretanto, o empobrecimento, a instabilidade, o sofrimento do povo, a degradação da economia, da sociedade e a da democracia não pararam de aumentar. E, apesar disso, as pessoas continuam a não vislumbrar alternativas.
Só assim se explica que um governo possa perder o apoio nas ruas, perder o apoio nas instituições, perder o apoio nas urnas – e, ainda assim, sobreviva, levado ao colo por um PR também ele descredibilizado.
Este é um governo que não tem força nem vontade para negociar. E um governo que não defende os interesses do seu povo é um governo que tem de ser substituído.
No entanto, as pessoas continuam a não vislumbrar alternativas e isso vê-se na capacidade limitada de mobilização para o protesto.
Mas nós não temos o direito de desistir. E não nos chega fazer bons diagnósticos acerca dos bloqueios que enfrentamos.
Precisamos de coragem, determinação, imaginação e espírito de abertura, de modo a romper com os bloqueios que persistem à emergência de uma solução política que recuse o destino que as elites económicas nacionais e as elites políticas europeias querem reservar para Portugal.
Precisamos de clareza nos propósitos e nas propostas. Precisamos de construir formas eficazes de transmitir o que queremos e o que não queremos - na educação, na saúde, na segurança social, na regulação do trabalho, no sistema fiscal, no regime democrático, no desenvolvimento da economia, no processo de integração europeia.
É preciso acção política que dê resposta ao sofrimento e que recupere a confiança no futuro.
O Congresso Democrático das Alternativas cá estará nos próximos meses para dar o seu contributo.
Ricardo Paes Mamede
Intervenção de encerramento no debate Rejeitar o Orçamento, Afirmar Alternativas
31 de outubro de 2013, Auditório do Liceu Camões, Lisboa